quarta-feira, 23 de abril de 2014

A história da praça dos olhos vivos.

99 era o número da casa. Nada de numerologia, só uma observação. Em frente a ela, uma praça sempre em reforma. Dentro da casa, quatro dezenas de mulheres. Cozinhavam, limpavam e cuidavam de uma pequena plantação atrás da casa. De ano em ano, 5 delas eram escolhidas para sair. Faziam compras, resolviam questões referentes à propriedade e vendiam hortaliças na feira da cidade (os melhores repolhos da região), perto da praia.
Pouco era sabido a respeito delas. O que se via eram cabelos vermelhos, violetas, azuis e brancos. Olhos cor de perola. Pele branca e intocada. Trabalhavam e cantavam durante a semana e dormiam durante o sábado e o domingo. Alguns juravam ver luzes coloridas saindo pelas brechas das portas à noite.
Sua relação com a cidade e seus habitantes reduzia-se às cinco escolhidas. Em geral, não haviam problemas. "Recebemos do Sol o que ele nos dá e devolvemos m harmonia com o mundo. Somos um espelho", dizia a escolhida de cabelos cor de fogo.
Chegou à cidade a notícia de que o reino havia descoberto um novo mundo - a Austrália. Para fazer o povoamento e reconhecimento das terras, a rainha enviaria uma nau com alguns soldados e prisioneiros. A mensagem real ordenava que toda cidade que os recebesse durante a viagem deveria encher seus barris de água, vinho e alimentos frescos. Ao saber disso, a população encarregou-se se limpar as ruas e preparar seu espírito para receber os visitantes.
Algumas semanas depois, eles chegaram. Cheiravam a ovo podre e cólera. Queriam água limpa e mulheres. Banharam-se e, a caminho do único bordel da cidade, avistaram 5 pontos de luz. Um cor de fogo, um azul, um violeta, esmeralda e amarelo. Mudaram os passos em direção a elas, mas o mais idoso dos que foram encarregados de servi-los avisou-os das regras do lugar.  "Afastem-se delas", disse um outro homem, "São as intocáveis. Ninguém chega perto delas nem da casa." Os visitantes obedeceram. Voltaram-se para o caminho do bordel, mas encheram os moradores de perguntas. Tiraram deles tudo o que podiam sobre as mulheres misteriosas.
Já alimentados e estabelecidos, reuniram-se à noite para planejar a continuação de sua viagem. Eram 60 homens, entre prisioneiros reais e soldados, onde os prisioneiros eram a maioria. Ladrões, assassinos, falsificadores, estupradores, déspotas. Conversavam sobre as mulheres do bordel quando um deles levantou a voz e falou "Você fala sobre essas porque ainda não viu as belezas que nós vimos hoje", depois contou tudo que sabia sobre elas. Os companheiros ouviam e deliciavam-se com as descrições. Mulheres o bastante para todos eles, todas intocadas. O plano era irem embora no dia seguinte, uma sexta-feira, mas decidiram ir na noite do sábado, após fazerem uma visita à casa 99.
Passou a sexta e quase ninguém viu os forasteiros. "Devem estar cansados da viagem", diziam os feirantes. O sábado chegou e quando os homens chegaram à casa, encontraram todas as janelas fechadas. A porta estava trancada, mas alguém lembrou de olhar atrás da casa. Um portão separava as hortaliças da cozinha e foi por lá que todos entraram. Subiram as escadas e encontraram  todas deitadas, dormindo, sem roupa. suas respirações seguiam um mesmo ritmo e nenhum barulho as acordava. Era o cenário perfeito. Avançaram de um em um. Os que estavam em um lugar mais alto na hierarquia dos prisioneiros ficavam com apenas uma moça. Os outros, dividiam e revezavam. Eles lambiam as peles alvas e puras, arranhavam e mordiam e elas acordavam logo que eram invadidas. Por terem o dobro do tamanho delas, os homens conseguiam segurá-las, mas tinham certeza de que os gritos eram ouvidos na cidade. Se tivessem sido ouvidos depois do acontecido, diriam que elas pareciam brilhar. Quando todos estavam saciados, desceram as escadas e encontraram todas lá. Assanhadas, arranhadas, machucadas. Tentaram correm em direção ao portão, mas não conseguiam abri-lo. Tentaram correr pra outra direção, mas já não conseguiam se mexer. Viram um clarão e depois tudo se apagou.
As mulheres passaram a madrugada trabalhando. A reforma em frente à casa parecia que finalmente iria acabar. Uma praça, com pontes e um lago. Muitas flores. Muitas estátuas. Abutres, porcos, cobras, aranhas e crocodilos. A população diria que era o único defeito do lugar, passa pelo lindo lago e ver todas as estátuas horrendas. Todo homem que passava por ali, dizia ver olhos e movimento - os das estátuas.
Meses depois, chegou ao reino a notícia de que o navio enviado ao Novo Mundo havia naufragado. Nem mesmo na sua última cidade de estadia os moradores sabiam de seu paradeiro.
Na casa de número 99, algumas mulheres deram à luz. Todos meninos. Nasceriam todos de cabelos brancos e olhos negros. O resto da cidade nunca soube explicar como crianças haviam aparecido por ali, mas ninguém jamais ousou chegar perto de algum deles e questionar qualquer coisa. Os repolhos não pareciam mais ter o vigor de antes, e anos se passaram até alguém ouvir alguma melodia sair da casa novamente.

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