terça-feira, 14 de outubro de 2014

Eu não como mais cenouras

Alice disse que eu deveria seguir o coelho, porque ela havia machucado o pé e não poderia continuar correndo. "Maldito coelho, eu só queria pegar flores e fazer uma coroa. Ela nem me falou como ele era, nem vi essa criatura passando por aqui, como foi que ela machucou o pé?" pensei.

Comecei a correr e meus sapatos me atrapalhavam. Não eram sapatos, eram sandálias, daquelas que a abotoadura fica do lado de dentro do pé. Acontece que eu tropeçava e batia os pés e ficava me arranhando. Alice falou que eu não podia sair descalça, aí coloquei a primeira coisa que vi, mas foi a pior coisa, então deixei do lado da cerca e continuei.

Tinha um buraco e uma árvore, acho que a árvore saia de dentro do buraco, e escutei batidinhas vindo lá de dentro. "O que diabos esse coelho faz aí?" falei enquanto entrava naquilo. Caí. Era um túnel, daqueles que a gente vê na televisão que ligam um lugar do Vietnã a outro lugar do Vietnã. Eu vi pedras, lixo, raízes e uns 5 ou 6 homenzinhos. Nada do coelho. Não era o Vietnã, mas os homenzinhos começaram a falar muitas coisas que eu não conseguia entender. Lembro que bateram na minha cabeça e acordei presa às raízes. Eles tinham injeções e meu braço estava bem esticado. Depois da primeira picada fiquei bem maior do que eu era, quase dobrei de tamanho, apesar do lugar continuar o mesmo. Depois veio outra picada e me senti menor que todos eles, mas eles ainda me olhavam de baixo. Ao fim, o coelho apareceu e fui solta.

Continuei andando e caí em outro buraco. O coelho usava minhas sandálias. "Ah, um ladrão! Por isso Alice quis que eu corresse atrás dele!". A questão era: não fazia sentido, pra mim, querer pegar o coelho antes que ele pegasse minhas coisas. Alice devia ter outro propósito. Resolvi andar, porque esse buraco era iluminado e eu conseguia ver a lenta sombra do coelho se deslocando.

Ao final do túnel, vi a sombra do coelho virar o contorno de um menino. Ele era pouco mais novo que eu, mas tinha mais músculos do que deveria. Olhou pra mim e disse que viver como coelho o tinha deixado mais forte, porque Alice o tinha perseguido a vida toda e essa era a única forma de fugir dela. Devolveu minhas sandálias, pediu desculpas e perguntou se eu podia dizer que tinha perdido seu rastro. Fiz que sim com a cabeça e, incrivelmente, achei o caminho de volta.

Quando saí do buraco da árvore, Alice estava em pé e esperava como eu esperaria por uma torta de chocolate. Estava radiante. Era a primeira vez que eu olhava pra ela assim, olho no olho. Ela estava toda de branco, cabelos vermelhos. Usava um casaco branco, felpudo, apesar do calor. Na ponta de seus sapatos eu vi pequenos fios que pareciam bigodes e seu pescoço branco e limpo trazia um cordão com um pingente vazio "ela deve ter perdido a pedrinha enquanto corria".

Contei que não tinha conseguido alcançar o coelho e ela respondeu que não tinha problema. "Você é tão pequena, ele deve ter corrido mais rápido". Assenti. Demos nossas mãos e andamos até sua casa. Minha tia disse que podíamos ir para a mesa, porque o jantar estava pronto. Havia carne, algo pastoso que parecia ser um molho e salada de cenoura. Me servi de tudo, enquanto Alice colocou apenas carne em seu prato. "Você não vai comer disso?" e apontei pro prato da salada. "Não," ela respondeu "eu não como mais cenouras".

Quando fomos deitar, vi Alice abrindo uma caixa que cheirava muito mal. Era prateada, mas bem suja. Tentei ver o que tinha dentro, mas ela não deixou. Disse que eu ainda não era a hora, mas que amanhã, quando ela conseguisse encontrar o coelho, ia me deixar ver como ele ficaria lá dentro.

Alice é linda. Quando dorme, seu cabelo parece estar vivo e seu nariz fica se mexendo, como se ela estivesse com coceira. Minha tia disse que ela pareceu diferente depois que foi encontrada lá, dentro do túnel, mas eu acho que ela só ficou mais bonita e habilidosa. Consegue até girar o pescoço...

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